A geografia rural e o pensamento frances


 A história da geografia brasileira1,passa, invariavelmente, pela influência das bases teórico-metodológicas francesas, isso se deve aos primeiros geógrafos fundadores dos cursos superiores de geografia no Brasil, de origem francesa, que difundiram o pensamento adquirido na França sob a tutela de Paul Vidal de La Blache.
2Assim, o principal motivo está associado à criação dos primeiros cursos de geografia universitária no Brasil, em 1934 na Universidade de São Paulo, e em 1935, na Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro), nos quais surgiram pelo esforço de geógrafos trazidos da França, para sua criação e constituição, entre eles destacam-se Pierre Deffontaines, Emmanuel De Martonne, Pierre Monbeig e Francis Ruellan, entre outros que colaboraram.
3A matriz originária francesa deu a estas duas instituições de ensino uma base inicial para o desenvolvimento das pesquisas realizadas no Brasil e sempre tangenciaram o referencial teórico-metodológico, tanto na geografia física como na geografia humana. Sobre isso, Moraes (1994), afirma que geografia francesa sempre esteve presente e relacionada nos estudos realizados pelo Departamento de Geografia, da Universidade de São Paulo:
Fundado por mestres franceses, tendo por modelo a estrutura dos departamentos/cátedras em que estes se formaram e por doutrina o possibilismo lablacheano, o DG jamais conseguiu sair da órbita de influência da geografia produzida em França. Sequer conseguiu assimilar, mesmo que marginalmente, outras orientações teóricas. Do mesmo modo que a geografia francesa, a geografia brasileira pensou-se como uma extensão da Escola Normal, tendo por público-alvo o docente do ensino fundamental. Também como esta incorporou fenomenal simpatia pelo empirismo, elegendo por modelo básico de pesquisa a monografia regional. (MORAES, 1994).
4Ainda sobre a influência francesa na geografia brasileira, Aroldo de Azevedo (1976) ressalta os estudos regionais e monográficos que foram amplamente difundidos no Brasil sob a base lablacheana:
 [...] Demonstrou a necessidade dos estudos de síntese, no campo da Geografia, estimulando, inspirando e dirigindo enorme série demonografias regionais. Bateu-se incansavelmente pelo estudo das causas e efeitos, em relação a cada fato geográfico – o princípio da causalidade -, ao mesmo tempo que coordenou e zanalogia, já sugeridos e defendidos por Humboldt e por Ritter. (AZEVEDO, 1976, p.15-16).
5No intuito de desvendar as paisagens agrárias brasileiras, o geógrafo sob a base metodológica francesa apresentava quatro características básicas no desenvolvimento da pesquisa “a busca da síntese pela observação da paisagem, a compreensão da paisagem agrária como reação do homem ao meio, a associação com a História, e a preocupação com as formas dehabitat rural” (DINIZ, 1984, p.36). Este autor enfatiza o lastro lablacheanono âmago das pesquisas geográficas:
Sobretudo por influência de Vidal de La Blache, e com oposição as idéias do determinismo ambiental, toda a atividade humana foi analisada como reação as influências do meio físico. [...] Dessa reação aparecem osgêneros de vida, que são conjuntos de técnicas, hábitos e processos que permitem ao homem a sua subsistência. (DINIZ, 1984, p.37).
6Na geografia agrária, o principal disseminador do referencial metodológico de Paul Vidal de La Blache, foi Pierre Monbeig, que esteve no Brasil de 1935 a 1946, desenvolvendo pesquisas, com cunho empírico nos Estados de São Paulo e Paraná procurando desvendar os gêneros de vida, atividades humanas e o habitat existente no interior do Brasil.
Foto 1 Pierre Monbeig e Pierre Deffontaines no II° Congresso brasileiro de geógrafos
Foto 1 Pierre Monbeig e Pierre Deffontaines no II° Congresso brasileiro de geógrafos
7Os geógrafos franceses juntamente com outros geógrafos brasileiros, como Aroldo de Azevedo, Carlos Delgado de Carvalho, Everardo Backheuser, Josué de Castro, Caio Prado Júnior, Fernando Antônio Raja Gabaglia, entre outros deram suporte a criação dos primeiros cursos de graduação em geografia, além de outros órgãos ligados a geografia, como o Conselho Nacional de Geografia (CNG) em 1933, a Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB) em 1934 e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1938.
8Em decorrência destes pilares de ensino e pesquisa construídos no Brasil, houve a necessidade de criar veículos de divulgação das pesquisas e material geográfico, além de ter meios para registro de documentos, reuniões, deliberações e eventos geográficos.
9Nesse sentido, foram criadas as revistas científicas na área da geografia, a partir da década de 1930. A primeira delas foi a Revista Brasileira de Geografia, no ano de 1939, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Conselho Nacional de Geografia, com circulação trimestral. No ano de 1943, o pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Conselho Nacional de Geografia lançam sua segunda revista na área, chamado Boletim Geográfico, com circulação bimestral. Por fim, a Associação de Geógrafos Brasileiros lança o Boletim Paulista de Geografia em 1949, inicialmente, com circulação quadrimestral passando para circulação semestral, posteriormente.
10Dessa forma, este artigo propõe-se a analisar as principais influências da geografia francesa de Paul Vidal de La Blache na história da geografia brasileira, em especial no campo da geografia agrária.

Enfoque metodológico no estudo da história do pensamento geográfico

11Para análise bibliográfica e interpretação de textos se faz necessário uma metodologia que seja condizente aos estudos da linguagem e de métodos que contemplem a visualização do momento histórico aliado ao pensamento dos autores e de suas publicações.
12A hermenêutica merece destaque nos estudos de história do pensamento, sendo uma forma de interpretar e compreender os textos com o momento histórico (figura 1). Existem diversas técnicas de pesquisa que podem ser utilizadas com esse método, como a análise do discurso, análise de conteúdo, palavras-chaves, representatividade argumentativa entre outros. Estas técnicas serviram como base para a leitura e interpretação dos artigos publicados nas revistas selecionadas.
Figura 1 - Desenvolvimento metodológico para compreender a História do Pensamento Geográfico.
Figura 1 - Desenvolvimento metodológico para compreender a História do Pensamento Geográfico.
13A respeito do material consultado, pesquisou-se desde o primeiro volume de cada revista científica até o último volume do ano de 1970. A seleção deste período contempla o que se denominou chamar de “Geografia Clássica” ou “Tradicional”, resultando numa análise de 390 volumes de revistas, sendo 127 volumes da Revista Brasileira de Geografia, 218 volumes do Boletim Geográfico e 45 volumes do Boletim Paulista de Geografia.
14A seleção dos artigos analisados é referente à geografia agrária ou rural, conforme Diniz (1984), estes estudos incluem aqueles ligados a geografia agrícola e da agricultura, além dos relacionados com a paisagem rural e seus elementos componentes. A seleção dos artigos não se limitou apenas aos trabalhos publicados por geógrafos brasileiros, mas sim todos os autores de outras ciências e de outras nacionalidades. Tendo em vista, a grande importância de geógrafos estrangeiros (por exemplo: Pierre Monbeig e Leo Waibel) e de outros cientistas humanos.

Características teórico-metodológicas da geografia francesa

15Muito já se falou sobre as características da geografia francesa e a evolução do pensamento geográfico, como em Capel (1981), Andrade (1999), Lencioni (2003) entre outros que pesquisam sobre a história da geografia. Na geografia agrária citamos os trabalhos de Gusmão (1978), Andrade (1995), Ferreira (2002) e Alves e Ferreira (2007, 2008, 2009 e 2010), contribuíram para o entendimento e aprofundamento das questões epistemológicas da geografia, e em especial da geografia agrária.
16A abordagem teórico-metodológica francesa está calcada nos pressupostos da geografia regional que enfatiza os trabalhos empíricos e a observação direta, com a utilização do método indutivo, possibilitando ao geógrafo descrever e detalhar ao máximo os aspectos da paisagem (natural e humana). O entendimento da geografia por Vidal de La Blache (1954) é descrito da seguinte forma:
A geografia humana não se opõe, portanto, a uma geografia que não se preocupe com o elemento humano; aliás, tal idéia só poderá ter germinado no espírito de alguns especialistas intolerantes. Traz, porém, uma nova concepção das relações entre a Terra e o Homem, concepção sugerida por um conhecimento mais sintético das leis físicas que regem a nossa esfera e das relações entre os seres vivos que a povoam. (VIDAL DE LA BLACHE, 1954, p.27).
17A respeito da técnica da observação e de outros elementos metodológicos da geografia, Pereira (1945) menciona Paul Vidal de La Blache para afirmar o objeto de estudo da geografia:
[...] a geografia é a análise da paisagem, como acentuou Vidal de La Blache. As formas, os fenômenos e os aspectos da superfície terrestre, resultantes das forças e dos agentes físicos, que continuamente trabalham, modelando-a ou transformando-a sob os nossos olhos, quando coexistem num determinado espaço, independentemente da presença do homem, formam o que modernamente se chama paisagem natural. Mas o homem com sua atividade na superfície terrestre altera em maior ou menor grau a paisagem natural donde o novo tipo plasmado pelo homem – a paisagem cultural. (PEREIRA, 1945, p.1480).
18Para o autor a ciência geográfica auxilia no conhecimento do mundo através de seu método “esse método, como para as ciências físicas ou a psicologia experimental, é o da observação, realizada, sobretudo, no grande laboratório da Natureza” (PEREIRA, 1945, p.1480). Assim, a paisagem se caracteriza como o cenário que deve ser observado, descrito e comparado pelo geógrafo, a fim de atingir a síntese geográfica.
19José Veríssimo Pereira (1945) ainda ressalta o principal método de análise da paisagem geográfica pela geografia francesa: a observação:
Como ciência da observação, ensina a “ver”, o que é precisamente o mais importante, o que é típico, traçando uma espécie de fundamento do quadro geográfico, a paisagem clássica [...] conforme Deffontaines, a fazer compreender melhor tudo o que há de particular em cada região, porque permite adquirir essa noção essencial na disciplina da observação que é a “noção de tipo”. (PEREIRA, 1945, p. 1480).
20Mas não basta observar a paisagem para compreendê-la, o autor explica como deve ser este procedimento “a observação que se decompõe emanálise, comparação e classificação, constitui, com a investigação, os dois processos essenciais do método geográfico” (PEREIRA, 1945, p.1480).
21A respeito da observação e dos procedimentos metodológicos Francis Ruellan (1943) também se refere à questão do método nas pesquisas geográficas e aponta algumas preocupações e soluções:
Nos ensaios que tendem a reconstruir os encadeamentos dos fatos a traçar sua evolução, os processos puramente dedutivos, em que apenas o raciocínio intervém, são particularmente perigosos porque se afastam dos fatos observados e negligenciam degraus importantes. (RUELLAN, 1943, p.56).
22Assim, ele entende que a observação ainda é a principal ferramenta do geógrafo “Em resumo, como as ciências físicas e naturais, a geografia requer uma perfeita disciplina da observação e do raciocínio, como as ciências morais exigem um perfeito domínio da expressão” (RUELLAN, 1943, p.56).
23A respeito dos estudos regionais, Melo (1955) afirma que o principal método de análise do geógrafo é ir e ver, ou seja, a observação e o trabalho de campo:
Porque, para o geógrafo, como já se tem dito, nada como ir ver. Laboratório insubstituível para os estudos geográficos é a própria natureza, é o campo onde os fatos são surpreendidos e, observados diretamente e ao vivo. O ir e ver não é só o fundamento e o ponto de partida metodológico dos trabalhos de elaboração do conhecimento geográfico. É também uma das formas, um dos meios auxiliares mais eficazes para o rendimento dos cursos. (MELO, 1955, p.73-74).
24Daniel Faucher (1963) ao tratar dos métodos em geografia agrária destacou o processo gerador da paisagem agrária e como se deve entender essa construção de pensamento:
Os sistemas agrícolas, ajustados aos modos de vida e às condições geográficas, são geradores da maioria dos fenômenos por onde se caracteriza, num dado lugar, a paisagem agrária. [...] A influência dos sistemas agrícolas sobre o habitat não é menos evidente. A dispersão ou a concentração da população podem ser criadas ou favorecidas por fatores físicos, às vezes por circunstâncias históricas. (FAUCHER, 1963, p.186-187).
25A respeito da distinção dos métodos usados nos estudos rurais Faucher (1963) distingue os procedimentos e elementos a serem pesquisados nos diferentes ramos da geografia rural (econômica, agrária e da agricultura). Na geografia econômica, tem como objeto de análise “o estudo da repartição das culturas do mundo, o conhecimento de seu volume, de seu emprego, de sua circulação” (1963, p.185), e tem como fundamento básico a estatística, por este motivo é uma geografia quantitativa.
Foto 2: Daniel Faucher
Foto 2: Daniel Faucher
26A geografia agrária “visa as formas de atividades que criam as culturas e todos trabalhos inscritos no meio geográfico em função desta atividade” (FAUCHER, 1963, p.185). O objetivo é analisar os elementos qualitativos, como gêneros de vida, modos de vida, habitat e os elementos que compõem a paisagem. A geografia da agricultura se atrela somente as questões da produção agrícola em questão, assim, seria um ramo da geografia econômica que trata da produção agrícola.
27Ruellan (1944) entende que as pesquisas em geografia humana são consideradas as mais difíceis, no que tange a metodologia, mas esclarece alguns pontos para o bom andamento dessa pesquisa:
As formas, a situação e a distribuição do habitat rural podem ser facilmente estudadas ao mesmo tempo em que se farão esboços rápidos da utilização do terreno em cada paisagem encontrada. Com esses esboços, poder-se-á tentar fazer uma carta de reconhecimento da utilização do terreno. [...] Essa investigação, completada por algumas informações sobre o regime de trabalho, dará imediatamente os elementos necessários para orientar o estudo dos gêneros de vida rural. (RUELLAN, 1944, p.40-41).
28Com base nestes princípios, a geografia agrária se desenvolveu no Brasil, ilustrado na figura maior de Pierre Monbeig, discípulo dos ensinamentos de Paul Vidal de La Blache, elaborando detalhadas monografias regionais, aliando os aspectos físicos com os elementos humanos da paisagem:
A relação do meio físico com os elementos humanos são exaltados na obra de Monbeig, ele não dissocia os impactos e dinâmicas do domínio físico sobre o homem, entretanto, isso são condições que alteram os modos de vida das populações. Porém, não é determinante quanto sua vivência, apenas devem ser considerados para entender determinadas situações daquele modo de vida existente. (ALVES, 2009, p.2003).
29A inter-relação entre as ciências naturais e sociais faz da geografia uma ciência complexa e com visões interdisciplinares (RIBEIRO, 2010). A respeito das relações com o meio físico e a sociedade Paul Vidal de La Blache (1954) ressalta:
As causas físicas, cuja importância os geógrafos se tinham anteriormente esforçado por sublinhar, não devem por isso ser desprezadas; importa sempre assinalar a influência do relevo, do clima, da posição continental ou insular sobre as sociedades humanas; mas devemos encarar os seus efeitos no homem e no conjunto dos seres vivos, simultaneamente  como principal utilizado na geografia clássica, houve inúmeras abordagens metodológicas empregadas nas pesquisas em geografia agrária, sendo elas históricas, comparativas, estatísticas, sociológicas entre outras .

Década de 1930 a 1950:

3A produção científica em geografia agrária foi discreta na primeira década de estudo (Tabela 1), mas esteve presente nos dois anos consultados.
Tabela 1 - Produção da geografia agrária em periódicos nacionais entre 1939 e 1940.
Ano \ Periódico
Revista Brasileira de Geografia
Boletim Geográfico
Boletim Paulista de Geografia
Total
1939
1
-
-
1
1940
2
-
-
2
TOTAL
3
-
-
3
34O primeiro trabalho publicado sobre geografia agrária na Revista Brasileira de Geografia é de autoria de Preston James (1939), o qual abordou a questão da colonização no sul brasileiro. O autor destaca que a população rural no Brasil, de forma geral é muito atrasada em relação ao tempo de ocupação, concentrando-se nas áreas ao sul do Brasil e no Estado de São Paulo, apesar das ótimas condições geográficas, em outras regiões para a produção agropecuária:
O Brasil possui também grandes áreas de boa terra para cultura, apropriada à colonização agrícola permanente. Nenhuma nação de extensão comparável à sua, perde tão pequena porção de seu território devido a elevações íngremes, excesso ou deficiência de umidade. (JAMES, 1939, p.74).
35Na década de 1940, houve inúmeros trabalhos e abordagens metodológicas na geografia agrária (Tabela 2), mas sempre balizados pelo método indutivo e pela empiria e as monografias regionais.
Tabela 2 - Produção da geografia agrária em periódicos nacionais entre 1941 e 1950.
Ano \ Periódico
Revista Brasileira de Geografia
Boletim Geográfico
Boletim Paulista de Geografia
TOTAL
1941
-
-
-
-
1942
-
-
-
-
1943
-
2
-
2
1944
1
2
-
3
1945
-
5
-
5
1946
-
3
-
3
1947
4
7
-
11
1948
5
2
-
7
1949
2
4
1
7
1950
4
5
3
12
TOTAL
16
30
4

36A Produção científica na década de 1940 totalizou 50 artigos referentes à geografia agrária nos três periódicos consultados. Destes, 60% foram publicados no Boletim Geográfico, 32% na Revista Brasileira de Geografia e 8% no Boletim Paulista. No ano de 1950, houve a maior circulação de artigos trabalhando a questão agrária, 24% do total publicado, apenas no ano de 1941 e 1942 não houve publicação de artigos sobre a geografia agrária. Destaca-se a publicação permanente em geografia agrária no Boletim Geográfico, desde sua criação em 1943.
37A demonstração do método indutivo nos escritos corrobora com a tendência da época, dos trabalhos de campos baseados na observação para a compreensão da realidade regional. Em outro estudo, Deffontaines (1947a) caracteriza a geografia econômica do Brasil enfatizando a agricultura, como ele mesmo afirma “O Brasil, país essencialmente agrícola” (1947a, p.1571). Neste estudo, ele percorre os principais ciclos econômicos ocorridos no Brasil e descreve as culturas agrícolas predominantes indicando a localidade e as condições na qual é realizada. Outra preocupação de Deffontaines (1947a) é com relação à fixação do homem no campo e a grande propriedade monocultora:
A monocultura causou sérios dissabores, crises periódicas e até mesmo crônicas de superprodução. Evolui-se para uma agricultura mais variada, mais bem distribuída. As grandes propriedades decrescem e muitos latifúndios estão a caminho de retalhamento em lotes [...] a fixação do homem ao solo é ainda uma esperança. (DEFFONTAINES, 1947a, p.1576).
38Deffontaines (1947b) tem o cuidado de diferenciar os habitat no estado de São Paulo, no que tange as habitações rurais. Primeiramente, ele descreve os habitat nas fazendas de café, na qual existe a casa grande onde vive o dono da fazenda, e uma casa menor na qual vivem os empregados dessa fazenda. Por fim, ele descreve as habitações do litoral, sobretudo ocupadas por pescadores. Esses estudos do habitat são de grande importância para a geografia agrária, porque através da classificação do conjunto de elementos que formam o habitat, como tipo de moradia, agricultura praticada e infra-estrutura são possíveis identificar os habitat rurais nas diferentes regiões brasileiras.
39Em outras pesquisas, Deffontaines (1947c,1947d) estudou os diferentes gêneros de vida que ocupam as montanhas em diferentes continentes, abordando o cultivo agrícola e a atividade pastoril. Estes trabalhos representam claramente o objetivo da geografia clássica, conhecer os diferentes modos de vida no globo, em especial as populações rurais:
Os gêneros de vida agrícola asseguraram, portanto, a ocupação pelo homem de muitos maciços, apresentando tantas variedades quanto os gêneros de vida pastoril, de que definimos as diferentes soluções montanhesas. (DEFFONTAINES, 1947c, p.358).
40Assim, o pensamento geográfico na década de 1940 representou o início da geografia científica no Brasil, sob forte influência estrangeira com diversos pesquisadores franceses, alemães e estadunidenses. Isso determinou o padrão metodológico da década situado no empirismo e na indução, trabalhos que partiam de uma realidade pontual em uma determinada região, para fazer co-relações e comparações com outras realidades pontuais. Este período enaltece a geografia regional de Vidal de La Blache, na qual a paisagem é o objeto maior da geografia, entender as características físicas e humanas, que formam a paisagem.
41Contudo, alguns estudos foram adiante destas clássicas observações e descrições (Tabela 3), como a utilização de abordagens históricas, resgatando o passado de regiões ou de temas abordados, pois a paisagem não é apenas o presente e sim a construção e evolução de seus elementos.
Tabela 3 – Abordagens utilizadas na produção da geografia agrária entre 1939 – 1950, nos periódicos nacionais.
Abordagem \ Década
1939-1940
1941-1950
Descritiva
1
24
Histórica
1
12
Estatística
-
5
Comparativa
1
4
Causa-efeito
-
3
Estatístico-fisionômico-ecológico
-
3
Histórico-Dialético
-
2
Neo-Positivista
-
1
Fonte: ALVES (2010, p.90)
42Com relação às abordagens, deve ficar claro que a maioria tinha como objetivo desvendar as características físicas e humanas nas diferentes regiões do Brasil, ou seja, o estudo regional foi à principal característica da década de 1940. O método indutivo, através dos trabalhos empíricos foram os predominantes, com a observação sendo a principal “ferramenta técnica” do geógrafo, entretanto, os dados dos CensosAgropecuários foram de grande valia para a expansão das técnicas de análise na geografia agrária. Sendo que a descrição regional esteve presente em 48% dos trabalhos em geografia agrária, 24% adotaram em conjunto ou não com a descrição a abordagem histórica e 10% utilizaram uma abordagem estatística para analisar os fenômenos da paisagem.

Década de 1950:

43A compilação do material publicado em geografia agrária nos três periódicos consultados resultou em um quadro que mostra a distribuição por ano/revista (Tabela 4)
Tabela 4 - Produção da geografia agrária em periódicos nacionais entre 1951 e 1960.
Ano \ Periódico
Revista Brasileira de Geografia
Boletim Geográfico
Boletim Paulista de Geografia
TOTAL
1951
5
6
3
14
1952
6
14
4
24
1953
2
9
-
11
1954
6
12
-
18
1955
5
10
1
16
1956
1
8
2
11
1957
3
15
2
20
1958
3
4
4
11
1959
5
7
3
15
1960
1
2
1
4
TOTAL
37
87
20
144
44A produção científica na década de 1950 totalizou 144 artigos referentes à geografia agrária nos três periódicos consultados. Destes, 60,4% foram publicados no Boletim Geográfico, 25,7% na Revista Brasileira de Geografia e 13,9% no Boletim Paulista de Geografia. No ano de 1952, houve a maior circulação de artigos trabalhando a questão agrária, 16,6% do total publicado, e apenas no ano de 1960 foram publicados 2,8% da década. Observa-se a ausência de produção no Boletim Paulista de Geografia nos anos de 1953 e 1954, nos demais anos e revistas sempre houve produção.
45O trabalho de Mattos (1951) ao fazer um estudo regional da Zona de Itapecuru, Maranhão destacou a importância do ruralismo na cidade. De acordo com o Censo de 1940, 90,5% da população vivia no meio rural:
O ruralismo, como vemos, constitui um fato dominante na região. Tal circunstancia, entretanto, transmite-nos um falso otimismo. O povoamento rural não corresponde, qualitativamente, o seu aspecto quantitativo. Esta parece ser uma das poucas regiões em que a vida urbana não exerce atuação muito forte sobre o meio rural. (MATTOS, 1951, p.35).

46Esse trabalho descreveu os aspectos físicos e humanos dessa região, caracterizando mais uma pesquisa de caráter regional da geografia humana. Aziz Nacib Ab’Saber e Costa Júnior (1951) percorreram o Triângulo Mineiro e Sudoeste Goiano e relataram as experiências desse trabalho3, tanto os aspectos do meio físico como o meio humano. Nesse artigo, os autores se detiveram na análise do povoamento e habitat rural. E chegaram as seguintes conclusões:
 [...] a região apresenta dois grupos de habitat rural, frutos de duas épocas da evolução econômica regional. De um lado, encontram-se as fazendas modernas ligadas à era do caminhão e aos novos padrões de atividades agrárias advindas da contigüidade com o Triângulo Mineiro. O outro grupo é representado pelo habitat rural clássico do velho Goiás, com suas grandes fazendas de gado, pontilhadas de “retiros”, moradias de agregados, mangueirões, chiqueiros e paióis de milho. (AB’SÁBER & COSTA JÚNIOR, 1951, p.43).
47De forma geral, os autores classificam essa região rural como “As paisagens rurais demonstram bem a pobreza geral das atividades agrícolas” (1951, p.56). Ab’Saber (1952) estudou a região a nordeste da cidade de São Paulo, mais precisamente o município de Santa Isabel. Os principais assuntos que foram abordados pelo autor são as paisagens e os problemas rurais dessa região. Como característica fundamental de povoamento e produção agrícola, observa-se a imigração japonesa e suas culturas agrícolas:
Na região, as paisagens rurais que mais se destacam pelo arranjo e cuidados de técnica agrária que refletem, são as que estão ligadas aos colonos japoneses. Algumas dezenas de famílias japonesas ali trabalham, empregando seus métodos de agricultura intensiva e horticultura e criando paisagens especiais. (AB’SÁBER, 1952, p.48).
48Para Ab’Saber (1952, p.52) a paisagem rural sofre influência dos imigrantes japoneses, mas também recebeu influência dos nativos: “ as paisagens rurais e as técnicas agrícolas imperantes no município de Santa Isabel, na vertente do Paraíba, guardam muito das tradições agrárias caboclas”. Com relação aos habitat rurais da região, o autor faz algumas considerações entre o meio físico, imigração e vias de acesso:
As funções diferentes a quem se destinam o “habitat” rural e as formas de relevo peculiares às regiões serranas, justificam em grande parte o fato. Mas é sem dúvida a presença de vias de circulação naturais, no eixo dos vales principais, que justificam a concentração do povoamento e a fixação do “habitat”. Quanto mais movimentadas as formas de relevo e menor o numero de vales, maior a função dos mesmos como vias de passagem naturais e mais intensas a concentração linear dos diversos tipos de “habitat”. (AB’SÁBER, 1952, p.59).
49Os trabalhos de Pasquale Petrone sobre a geografia agrária caracterizam sua base metodológica centrada nos estudos regionais. Petrone (1952) apresenta um estudo monográfico sobre a região do Corumbataí em São Paulo, o autor divide a estrutura da monografia regional em (1)Habitat ruralna qual descreve as condições de relevo, hidrografia e sua relação com a densidade demográfica e estrutura fundiária. Em seguida, estuda o (2) Povoamento e sua evolução para entender como se deu à expansão e ocupação na região, na seqüência o autor trata da (3) Ocupação do solo é caracterizada pelos aspectos culturais e físicos da região:
A paisagem cultural atual da região de Corumbataí é a resultante natural da evolução que acabamos de sintetizar. Em conseqüência, as propriedades da região obedecem a determinados padrões condicionados por essa evolução. (PETRONE, 1952, p.15).
50Dando seqüência ao estudo monográfico, Petrone (1952) aborda (4) Os aglomerados humanos trata da questão habitacional e sua localização, (5) O problema das comunicações está relacionada com a infra-estrutura da região. Em seguida, o autor aborda o (6) Êxodo rural que é marcante na região, levando os moradores a cidades vizinhas como Rio Claro, Santa Gertrudes ou São Paulo, por fim, o autor traz o (7) Problema da erosão para dar ênfase ao processo agrícola com o desmatamento de matas ciliares e dragagem das águas do rio Corumbataí para as lavouras das grandes propriedades, em detrimento dos pequenos proprietários.
51Apesar da colonização européia e da pequena propriedade predominante na região, o desenvolvimento não se efetuou, com base nisso, Petrone (1952) conclui sobre a política de reforma agrária e desenvolvimento:
A região de Corumbataí nos dá algumas lições entre muitas outras de ordem secundária. Não é bastante a presença do colono estrangeiro para que uma região se desenvolva. Não é bastante presença da pequena propriedade, apregoada por muitos, para que uma área se torne próspera. Numa época em que muito se fala de reformas agrárias, é necessário frisar que, em certos casos, Corumbataí o atesta, a fragmentação da terra é um mal como o é em outros casos a presença da grande propriedade. (PETRONE, 1952, p.32).
52O artigo de Monbeig (1953) que trata da estrutura agrária no oeste paulista, começa descrevendo as condições físicas dessa região, entretanto no decorrer do trabalho, nota-se uma mudança no texto do autor. Antes, os trabalhos eram detalhados com relação à descrição das paisagens e com os aspectos de habitat, nesse artigo, o autor toca em assuntos como a condição jurídica da terra, migrações, estrutura fundiária e fragmentação das terras “A condição jurídica das terras, num Brasil que havia sido domínio português, trazia sérios obstáculos à colonização pioneira”. (MONBEIG, 1953, p.457). O conceito de paisagem é bastante utilizado pelo autor, indicando o local habitado e com as transformações realizadas pelo homem:
A estrutura social do mundo pioneiro está impressa na paisagem: muito cheia de contrastes, é mais bem compreendida no terreno, o que não se dá nos campos muito alongados do nosso país. Contrasta a zona de sítios com a de fazendas. (MONBEIG, 1953, p.465).
53Todavia, o caráter metodológico do autor, centra-se na observação e no método indutivo. A descrição continua sendo a principal ferramenta de Monbeig, mas nesse texto, o autor insere temas antes não abordados em sua produção científica, entretanto, o autor deixa claro que uma análise mais aprofundada da situação da paisagem dessa frente pioneira somente através de um inquérito mais apurado.
54A geografia agrícola teve grande participação nos trabalhos publicados na década de 1950, além dos estudos relacionados com a imigração e colonização européia. A inserção de novas metodologias acresceu no pensamento geográfico agrário, sobretudo aquelas relacionadas às questões sociológicas, mas a tradição francesa da descrição e dos estudos regionais prevaleceu (Tabela 5).
Tabela 5 – Abordagens utilizadas na produção da geografia agrária entre 1951 – 1960, nos periódicos nacionais.
Apesar de novas abordagens nos estudos agrários, a geografia descritiva permaneceu em evidência com 41,7% dos artigos publicados na década de 1950, aliado a descrição a abordagem estatística e histórica corresponderam a 34% e 27,1% dos trabalhos publicados, respectivamente. A abordagem sociológica nos trabalhos de geografia agrária representou em 6,25% do total de artigos na década de 1950.
A compilação do material publicado em geografia agrária nos três periódicos consultados entre 1961 a 1970 resultaram em um quadro que mostra a distribuição por ano e revista (Tabela 6).
Tabela 6 - Produção da geografia agrária em periódicos nacionais entre 1951 e 1960.
Ano \ Periódico
Revista Brasileira de Geografia
Boletim Geográfico
Boletim Paulista de Geografia
TOTAL
1961
5
7
2
14
1962
3
4
*
7
1963
4
7
*
11
1964
3
4
1
8
1965
1
5
1
7
1966
5
4
2
11
1967
4
4
2
10
1968
2
5
3
10
1969
2
6
*
8
1970
6
4
*
10
TOTAL
35
50
11
96
58A produção científica na década de 1960 totalizou 96 artigos referentes à geografia agrária nos três periódicos consultados. Destes, 52,1% foram publicados no Boletim Geográfico, 36,4% na Revista Brasileira de Geografia e 11,5% no Boletim Paulista de Geografia. No ano de 1961, houve a maior circulação de artigos trabalhando a questão agrária, 14,6% do total publicado, observa-se a continuidade de produção nos periódicos, havendo artigos publicados em todos os anos.
59Diversos trabalhos seguiram a tradição teórico-metodológica francesa, a respeito da produção do café, Taunay (1961) faz uma descrição histórica dessa cultura na economia brasileira, comentando as melhores regiões, aptas ao sucesso da produção cafeeira e também, das regiões menos favoráveis ao cultivo do café:
No Pará e no Maranhão, limitou-se as culturas às escassas chácaras em que era produzido, em muito pequena escala. Não lhe era o habitatfavorável, aliás, precisando viver abrigado à sombra das grandes árvores, e ameaçado por moléstias criptogâmicas numerosas e mortíferas sem o recurso das áreas das terras altas como sucede na Colômbia e na Venezuela. (TAUNAY, 1961, p.448).
60O conceito de habitat é encontrado nesse texto, adotando a noção de ambiente, muito atrelado aos elementos naturais e físicos, que são condicionantes, para a fixação do homem e do desenvolvimento de atividades agrícolas e pecuárias. Petrone (1961) caracterizou os diferentes tipos de sistemas agrícolas na Baixada do Ribeira – SP, o trabalho consiste em distinguir os tipos de povoamento e as formas das atividades agrícolas. Com uma abordagem descritiva da região, o autor analisa o perfil do uso da terra com mapas mostrando a organização do habitat da localidade (Figura 2).
Figura 3– Perfil do uso da terra na região da Baixada do Ribeira – SP.
Figura 3– Perfil do uso da terra na região da Baixada do Ribeira – SP.
Fonte: PETRONE (1961, p.50).
61O pensamento geográfico na década de 1960 iniciou o processo de renovação, dos trabalhos regionais descritivos para os trabalhos com base estatística e modelizados (Tabela 7), entretanto, a revolução quantitativa só foi se dar no final da década e se aprofundar na década seguinte.
Tabela 7 – Abordagens utilizadas na produção da geografia agrária entre 1961 – 1970, nos periódicos nacionais.

Apesar de novas abordagens nos estudos agrários, a geografia descritiva permaneceu em evidência com 24,6% dos artigos publicados na década de 1960 havendo um declínio em relação às décadas anteriores. A abordagem estatística e os estudos neo-positivistas representaram 19,5% da produção, principalmente na segunda metade da década. Outro fato que chama atenção são os estudos com cuinho teórico-metodológico, 13%, em especial aqueles que tratam da explicação das técnicas quantitativas e como proceder com a metodologia da Comissão de Tipologia Agrícola da União Geográfica Internacional.
A epistemologia da geografia agrária se aliou aos referenciais embasadores da ciência geográfica brasileira pautada na tríade: indução – empirismo – descrição. Nos materiais analisados, revistas científicas, ficou latente a tradição francesa no pensamento geográfico, fortemente influenciada pelas figuras clássicas como Paul Vidal de La Blache e Albert Demangeon, que deixaram discípulos Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines e Francis Ruellan, onde ensinaram essa abordagem regional nas universidades brasileiras.
65Estes trinta anos de análise nas revistas científicas em geografia permitiram identificar alguns pontos que podem contribuir para a atualidade da geografia agrária. Primeiramente, diferentes abordagens sempre existiram nas pesquisas em geografia agrária, com métodos idênticos ou não, o foco de análise se diferenciou, mas a convivência de diferentes modos de pensar foi salutar para o avanço da ciência geográfica.
66Outro ponto refere-se ao modo como a geografia francesa penetrou e dominou a base teórico-metodológica brasileira, com a utilização de conceitos como habitat rural, fator geográfico, gênero e modo de vida, sistema agrícola, além do uso da categoria de análise, a paisagem, resultando num diagnostico de elementos básicos no estudo regional.
67O esquema metodológico dos trabalhos nesse período se assemelha, partindo de uma análise dos aspectos físicos ou naturais, análise da estrutura agrária e urbana, condições da população e moradia, e por fim, as análises comparativas ou de causa e efeito entre esses elementos. Este esquema era denominado de inquéritos regionais, e desta forma, era a melhor forma de “dissecar” os aspectos naturais e humanos de uma região.
68Portanto, a tradição francesa foi importante para a criação e consolidação da geografia agrária brasileira, com uma bagagem teórica e conceitual, bem como metodológica. E estes referenciais ainda são sentidos nas pesquisas atuais em geografia agrária, seja pelos conceitos utilizados ou pela tríade (indução – empirismo – descrição) ou pelo esquema metodológico.
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Bibliografia

AB’SÁBER, Aziz Nacib. “Paisagens e problemas rurais da região de Santa Isabel”. Boletim Paulista de Geografia. São Paulo. v.10, p.45-70, mar. 1952.
AB’SÁBER, Aziz Nacib., COSTA JÚNIOR, Miguel. “Paisagens rurais do sudoeste goiano, entre Itumbiara e Jataí”. Boletim Paulista de Geografia. São Paulo. v.7, p.38-63, 951.

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